No interior de Riozinho, a tradição guarani se une ao ensino público na única escola indígena do Vale do Paranhana

Riozinho – As manhãs são quase sempre de tempo fechado na aldeia Pindoty. Por lá, a cerração demora a se dissipar, como se soubesse que o tempo ali passa de um jeito diferente. A umidade transforma em barro a terra do chão, mas isso não parece importar. Longe da correria da cidade e da lógica industrial que nos são normais, os moradores da pequena vila aprendem desde cedo a ver o mundo pelas lentes de uma cultura diferente, que valoriza a conexão com a natureza e a necessidade de se “ouvir o tempo”. E o ensino público faz parte deste processo.

Há pelo menos nove anos, entre desafios, a Escola Estadual Arandu Porã tem feito parte da rotina da aldeia. Atualmente são seis alunos frequentando as aulas, que acontecem de forma multisseriada. O ensino é baseado na matriz curricular comum às demais escolas de educação básica. No entanto, o foco recai sobre a recuperação de memórias históricas e valorização das identidades étnicas e linguagens.

A única escola indígena do Vale do Paranhana conta com alunos do 1º ao 5º ano e funciona em uma estrutura de madeira improvisada, construída pela Prefeitura de Riozinho para ser um consultório de avaliação médica. A luz do dia cumpre o papel das lâmpadas e a conexão entre os colegas substitui o sinal de internet, ainda inexistente. Professores e a comunidade local, contudo, buscam por melhorias estruturais.

Direito garantido pela CF
A Educação Escolar Indígena é assegurada pela Constituição Federal de 1988, se tratando de uma modalidade da educação básica que garante aos indígenas, suas comunidades e povos a recuperação de suas memórias históricas, reafirmação de suas identidades étnicas, a valorização de suas línguas e ciências, bem como o acesso às informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não-índias. Em todo o Rio Grande do Sul são 90 escolas com esse perfil, atendendo cerca de sete mil alunos.

Rotina e horários
O ruído dos passos de quem visita a aldeia nas primeiras horas do dia logo é sobreposto pela mensagem de saudação em guarani: javy ju (lê-se djawy dju) ou, para nós, bom dia. Os moradores da aldeia não economizam em sua simpatia. Mais alguns passos para chegar até a escola. Lá estão os alunos, as professoras e também o Zeca, um urubu de estimação, hesitante na mesma medida em que parece ser curioso. O cacique Felipe chega em seguida e explica um pouco da rotina de todos os dias. “A gente tem uma casinha onde fica o fogo. Na parte da manhã, sentamos ali e escutamos o tempo e vemos se as crianças estão bem, se está tudo normal, se dá pra ir ou não, depois liberamos para a escola”.

As aulas na Arandu Porã acontecem de segunda a sexta-feira, das 7h30 às 11h30. Apesar dos horários fixos, o cacique explica que um dos costumes da tradição Mbyá-Guarani é comer quando se tem vontade. “Se der vontade de tomar café pelas 10 horas, tomamos pelas 10 horas. Como a escola e a professora têm horários, as crianças acabam se adaptando, mas eles têm liberdade para ir pra casa comer”, resume.

Cacique Felipe, líder da aldeia
“Aqui temos uma ligação muito forte com a espiritualidade, e junto com as crianças, a gente escuta o dia e o tempo para ver como elas se sentem para que se tenha concentração na sala de aula. Existe uma ligação espiritual com o chão, com a terra, com a natureza. Isso é muito importante na educação das crianças”.

Gilnei Santos, secretário de Educação
“A Secretaria Municipal de Educação vem auxiliando desde sempre em tudo o que as duas escolas estaduais do município precisam. O serviço que mais prestamos é o transporte escolar para os alunos indígenas irem para o Centro, mas também para todos os alunos da rede estadual do Centro da cidade”.

Daniela Faccio, professora da escola
“O dia a dia é como se fosse uma escola normal. Eles têm a cultura deles que é um pouco diferente, mas é uma escola multisseriada, com ensino globalizado. É explicado, dado todas as matérias, alfabetização, tudo dentro das normas da BNCC. As crianças falam em guarani, mas comigo falam em português”.

Ensino em duas línguas
As aulas da professora Daniela Faccio acontecem na maior parte do tempo em português. Entre si, os alunos conversam em guarani. “Em outras escolas sempre existe uma professora indígena, que é bilíngue. Aqui nós ajudamos por enquanto. Olhamos os cadernos das crianças, vamos repassando e construindo junto, entendendo os significados em português”, conta o cacique.

Os desafios não se restringem à rotina de estudos das crianças. Recém chegada na escola, a responsável pela parte financeira, Larissa Grisa, lembra que estar na sala de aula é uma luta diária. “Aqui não temos ajuda no transporte, e se enquadra na categoria de difícil acesso. Fazemos o papel de secretaria, pedagógico e financeiro entre duas pessoas. Não faz diferença se são 10 alunos ou mil, a parte burocrática é a mesma, pois todas as etapas são iguais”.

A despeito das dificuldades, a profissional chama atenção para a importância da valorização da cultura indígena. “A concepção de tempo, para nós é o tempo máquina, fabril, mas nessas culturas há um respeito aos ciclos da natureza. Isso acaba ensinando a gente e é importante preservar essas outras lógicas dentro da nossa sociedade. Respeito muito a história dos povos guaranis porque são mais de 500 anos de resistência”.

Dificuldades estruturais
O cacique Felipe ressalta que a falta de estrutura é o principal problema da escola. “Ainda não temos um prédio próprio para ela. Além disso, também não temos luz no espaço, isso dificulta a visão. São as nossas principais preocupações”.

A professor Larissa Grisa reforça que o objetivo é estruturar a escola, e tudo começa pela garantia de autonomia da instituição. “Temos várias questões a nível federal vinculadas à questão indígena, e nessa parte temos enfrentado um retrocesso, com muitas coisas paradas. Para construir uma nova escola precisamos de recursos do Estado, mas para isso precisamos nos desvincular da EEEM João Alfredo. Esse reconhecimento acontece pelo Ministério da Educação”, explica.

O secretário de Educação do município, Gilnei dos Santos, já trabalhou na escola e conhece bem os desafios que precisam ser superados. “Quando saí daqui, estávamos em processo de credenciamento da escola para funcionar na casa de alvenaria. Lá tem banheiro, luz e internet. Uma vez que a escola tenha sua independência, podemos buscar recursos para outro prédio”.

A Secretaria Estadual de Educação diz, em nota, que a instituição de ensino segue vinculada à João Alfredo e a instalação do novo prédio está em fase de elaboração de projeto, com a autorização para funcionamento da nova escola em trâmites jurídicos.

Dados
A aldeia Pindoty é formada por descendentes de povos guaranis e ocupa o espaço no município desde 2000. A área de 24 hectares é reconhecida oficialmente como terra indígena e fica a 7km do Centro. Ela abriga, atualmente, 21 moradores. Além do plantio, o artesanato é uma das fontes de renda e subsistência. A estrutura é composta por duas casas de alvenaria e uma de madeira e barro.